O desastre do Rio Grande do Sul e a distinção religiosa nas redes sociais
- João Paulo Silveira
- 3 de jun. de 2024
- 3 min de leitura

Nos últimos dias, as redes sociais foram abaladas por novas polêmicas religiosas, o que não surpreende ninguém. Tudo começou quando uma influenciadora evangélica de classe média, do tipo que tem crescido bastante, afirmou que o desastre ambiental no Rio Grande do Sul estava relacionado à presença de terreiros e centros religiosos afro-brasileiros na região. Ela foi interpelada pelo Ministério Público e acusada de racismo religioso, mas alega que apenas exerceu sua liberdade de fé. Há alguns dias, um padre do Mato Grosso do Sul fez uma afirmação semelhante, culpando o que ele chamava de "bruxaria" pela tragédia ambiental. Esses episódios reeditam, em tempos de redes sociais, a distinção religiosa que Jan Assmann discute em seu Violencia y monoteísmo - especificamente “mosaica”, já que o pesquisador alemão trata do judaísmo.
A interpretação religiosa de tragédias como punição de uma divindade irada, ou de um espírito contrariado, não é uma novidade histórica. Deuses ou outras entidades sobre-humanas poderiam punir ou se vingar de cidades e povos inteiros se alguns de seus preceitos, exigências ou vontades não fossem observados. Não faltam exemplos históricos que nos ajudam a pensar a ira celeste. Tucídides (sec. V a.C.), o historiador grego da Guerra do Peloponeso, conta que os habitantes de Esparta acreditavam que Poseidon irado causou um terremoto na cidade grega depois de um sacrilégio. No Japão do período Kamakura (1185-1333), o mestre Nichiren Daishonin (1222-1282) sustentava que Buda puniu o arquipélago nipônico naqueles dias com fome e carestia pelo desvio da verdadeira fé, conforme argumenta o historiador Hiroo Sato. Na Idade Média, a peste negra foi interpretada como punição divina pelas faltas humanas, assim como o terremoto que destruiu Lisboa em 1755. Em nosso século, o furacão Katrina em 2005 e o terremoto do Haiti em 2010 também foram percebidos como reação divina contra a homoafetividade e as religiosidades não cristãs. Mais recentemente, a pandemia do COVID-19 foi atribuída a um deus iracundo e punidor dos supostos pecados da humanidade.
Ao contrário do que acontecia entre os povos politeístas, para quem a fúria divina estava relacionada à impureza ou imperícia ritualística, o monoteísmo imagina a punição divina em função da distinção entre a verdadeira e a falsa religião. No Antigo Testamento, a punição tinha a ver com a infidelidade do povo ou das autoridades que se desviaram da verdadeira religião monoteísta em favor dos deuses estrangeiros e falsos que ameaçavam a integridade espiritual da comunidade.
Em nosso tempo, a ideia da punição divina vincula-se ao que alguns setores religiosos chamam de "guerra espiritual". Segundo essa crença, o outro, isto é, aquele que se orienta por diferentes coordenadas de fé ou que se define por uma identidade distinta daquela crida como divinamente inspirada, é parte de uma cultura diabólica que procura perverter a sociedade, seus valores, sua juventude etc. Essa modalidade da distinção religiosa se apropria da punição divina e a converte a uma representação política que aumenta a incomunicabilidade entre as partes da sociedade e os riscos de violência efetiva, simbólica e física. Um sujeito convicto de que a religião do outro pode provocar a ira de Deus é, possivelmente, capaz de tomar medidas contra essa religião sob a justificativa de que está defendendo a si mesmo e aos outros da futura ira de Deus.
Entendo que eu posso achar que minha religião detém algo como um “monopólio da salvação”, mas não posso criar no espaço público uma atmosfera persecutória em nome do que eu creio. Não posso estimular o assédio, o preconceito e a agressão contra o outro baseado em uma bizarra ideia de liberdade religiosa irrestrita. Também tenho ciência de que algumas tendências religiosas, do passado e do presente, podem promover violência e justificá-la com base em suas crenças. Elas não são menos religiosas porque são violentas, ao contrário do que o entendimento ideal de religião nos faz pensar hoje. Contudo, no mundo contemporâneo e sob o regramento democrático, a violência religiosamente orientada deve ser tratada como crime.
Além de tudo isso, a crença de que uma tragédia tem causas espirituais infantiliza o discernimento das pessoas, tornando-as reféns do medo de uma divindade tirana, representada por sujeitos e instituições que se aproveitam desse sentimento. Trata-se de um tipo de pânico religioso que estimula fanatismos e confisca o discernimento individual, nosso principal tesouro, em favor da vontade de outro. Mundivisões como essa têm consequências políticas, posto que elas impedem que as pessoas avaliem as verdadeiras causas dos fenômenos naturais e a responsabilidade humana em sua potencialização destrutiva, que no caso do Rio Grande do Sul tem a ver com negacionismo ecológico, negligência administrativa e ganância econômica.
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