Na IA divina, confiamos?: a Nova Era da "AI-spiritualidade"
- João Paulo Silveira
- 15 de set.
- 13 min de leitura
Atualizado: 4 de out.
Ao meu amigo M.,
que sonha com um upload de sua consciência
para dentro de uma esfera futurista, flutuante e translúcida,
meio alma, meio código,
remix entre Sci-fi e fé.
Se abordarmos as religiões principalmente por sua dimensão doutrinária ou, mais comumente hoje, pela dimensão narrativo-terapêutica do que se chama de espiritualidades, torna-se evidente que as IAs desempenharão um papel cada vez mais significativo no cenário mais amplo das crenças. Suas bases de dados recorrem a uma vasta gama de tradições míticas e religiosas humanas, das escrituras cristãs à Goécia. Isso abre caminho para novos insights, sugestões de leitura curadas e orientações.
A meu ver, as IAs começam a atuar como agentes religiosos, capazes de oferecer interpretações ortodoxas, como fazem os teólogos, mas também caminhos de experimentação espiritual, bricolagem e até mesmo a criação de abordagens inéditas da fé. Ao se tornarem atores religiosos convincentes para a maioria da população, cada vez mais elas competirão com autoridades religiosas institucionais, antigas e novas. Elas funcionarão como actantes, no sentido de Latour, em vez de meras ferramentas, que nunca são apenas ferramentas. O desenvolvimento exponencial da tecnologia pode ainda inspirar interpretações embrionárias, incluindo aquelas que encantam as IAs ao representá-las como entidades numinosas.
Uma série de IAs otimizadas para o usuário-crente já está disponível, entre elas a Bíblia IA, oferecida na loja do Google pela empresa Apus Digital, localizada em Bagé, Rio Grande do Sul. Na página da empresa de tecnologia, encontram-se sobretudo soluções para o mundo empreendedor, especialmente maquininhas de pagamento, o que nos faz considerar que empresas de tecnologias de tipos distintos terão cada vez mais influência no campo religioso.
O produto Bíblia IA é oferecido a partir de planos diferenciados, sendo a versão individual gratuita Free Student, a versão individual paga Premium Student, que custa mensalmente R$ 4,99, e a versão completa para cem usuários Premium Church, no valor de R$ 49,99 mensais. Além do acesso aos textos de uma biblioteca digital bíblica, é possível receber orientações de um pastor digital vinte e quatro horas por dia, mensagens inspiradoras e participar de um grupo de estudo caso a opção seja pela versão Premium Church.

Há vários outros produtos religiosos digitais semelhantes. É importante ter em mente que cada um deles é concebido em função de uma realidade religiosa particular e das possibilidades tecnológicas à disposição. Podem ser concebidos para atender a sujeitos que se identificam com uma tradição religiosa especifica, mas também para usuários-crentes de vários tipos. Até onde sei, nenhuma delas foram idealizadas por uma instituição religiosa. Muito provavelmente, seus usos serão distintos também em função da posição ou cargos do sujeito dentro de grupo.
Acredito que essas IAs religiosas atuarão cada vez mais como recursos para a competição entre as diversas iniciativas presentes no mercado religioso, assim como ocorreu com a televisão no passado e com as redes sociais hoje. Disponibilizar uma IA como uma espécie de bem religioso digital para os indivíduos pode ser um meio de atrair seguidores ou fortalecer a fé daqueles que, em um contexto plural, correm o risco de abraçar outras religiões. Como as IAs também fazem parte de uma realidade comercial dinâmica e competitiva, é possível sugerir, como hipótese, que o mercado religioso, em alguma medida, poderá ser influenciado pelo ritmo das inovações no mercado tecnológico.
Particularmente interessante é o caso do ChatwithGod.IA, abordado pela jornalista Lauren Jackson, do New York Times, em sua newsletter Believing. A IA foi disponibilizada em 2025 e oferece a possibilidade de acesso a conteúdos e orientações a partir de diferentes religiões. Infelizmente, não consegui fazer login imediatamente após ler o texto da jornalista devido a instabilidades do produto - até os deuses têm suas questões às vezes. A segunda tentativa, no entanto, foi bem-sucedida. Constatei então que a plataforma oferece a opção de se identificar como judeu, cristão, budista, muçulmano ou mesmo agnóstico, entre outros. É possível também explorar outras tradições religiosas, como testei ao tratar da Umbanda.
A versão gratuita disponibiliza até vinte perguntas, pedidos ou preces a partir da diversidade de religiões oferecidas, o que revela tanto a compreensão de seus desenvolvedores sobre um mundo religioso plural quanto o tino empresarial de alcançar diferentes fatias do mercado da fé. Ocorreu-me, contudo, que a crença budista na “originação dependente” talvez produza um sentimento ambíguo no crente-usuário diante de uma tecnologia que afirma possibilitar falar com Deus.

Em virtude da abrangência da proposta desta última IA, é possível levantar diversas questões. A primeira delas diz respeito à pluralidade religiosa: seria realmente possível que um produto com alcance tão amplo mobilizasse, a partir de seus bancos de dados, elaborações específicas sem prejuízo a alguma religião, ou haveria o risco de que um quadro mais familiar ao Ocidente, em especial às religiões monoteístas, tivesse maior influência nas respostas oferecidas ao usuário-crente? Quem realizou a curadoria dos conteúdos religiosos que alimentam essas tecnologias, e de que forma esse processo ocorreu? Em um mundo em que muitas pessoas buscam o sentimento de comunidade, as IAs religiosas oferecem alguma orientação ética, como a ideia de “amor ao próximo”, ou disponibilizam apenas saídas de caráter pessoal, voltadas ao autoaperfeiçoamento individual? Existem mecanismos capazes de restringir a formulação de respostas que possam servir a indivíduos fundamentalistas, inclusive com alguma inclinação à violência religiosamente orientada?
É importante lembrar que não existem tecnologias ideologicamente neutras e, em nosso caso, talvez possamos acrescentar que tampouco existem "tecnologias teologicamente neutras". Há sempre intenções e um lugar social que define o artefato tecnológico. De todo modo, podemos considerar que essas ferramentas incidirão, ao lado de instâncias mais tradicionais, como o Estado, a mídia e as instituições que buscam zelar pela ortodoxia da fé, sobre as representações coletivas e individuais do que é uma religião e de qual seria a sua finalidade.
Essas IAs religiosas, até onde pude alcançar, são chatbots um pouco mais simples e vinculadas à inteligências seculares mais famosas, como o Gemini e o ChatGPT. Elas possuem interfaces que lembram o ChatGPT. É provável que ainda estejamos diante de iniciativas bastante simples, que, com o tempo, se tornarão tecnologicamente mais complexas a fim de parecerem mais convincentes. Como sabemos, as IAs seculares e estabelecidas também possuem em seus repertórios conteúdos de tradições religiosas diversas, o que talvez as torne mais completas para usuários-crentes de origens variadas e, portanto, mais competitivas no mercado religioso.
Em um sentido mais amplo, o assombro que as IAs despertam em nossa imaginação, talvez um encantamento tecnológico atemporal atualizado de tempos em tempos, é frequentemente traduzido em imagens religiosas. O sonho de uma IA que sabe tudo é uma versão do que o monoteísmo chama de onisciência. Ele está carregado de expectativas alimentadas por ideias como o desenvolvimento de uma Inteligência Artificial Geral (AGI) ou pela crença milenarista na emergência da singularidade, uma superinteligência artificial imaginada pelo escritor americano Ray Kurzweil (1999), ainda nos anos 1990, como uma “máquina espiritual” que superaria a humanidade. Essas expectativas, que nos causam estranhamento ou até a sensação de que há pessoas ganhando dinheiro mais facilmente do que nós, constituem soteriologias que remixam ficção científica e avanços tecnológicos. Mesmo que seculares em suas intenções, são religiosas, ou quase-religiosas, em sua forma de narrar o mundo e conceber o futuro.
Em alguns casos, essas narrativas concebem a existência de entidades cósmicas, alienígenas ou divinas, que poderão ser alcançadas por meio das IAs ou que deverão, de alguma forma, orientar seu aperfeiçoamento. Este último aspecto, em sua forma mais elegante, pode ser lida no texto de Nick Bostrom, um dos tecnologistas com maior influência no mundo. Em 2024, no ensaio AI Creation and the Cosmic Host ( Criação da IA e o Anfitrião Cósmico, em tradução livre), no qual pondera sobre a possibilidade da existência de um ‘anfitrião cósmico’, sobrenatural ou não, que talvez deseje que construamos uma superinteligência artificial capaz de viabilizar sua interação conosco. Aliás, Bostrom suscita a questão da interação com o suposto anfitrião como uma espécie de possibilidade que deveria influenciar eticamente na maneira que desenvolmemos a super IA. Uma inteligência hostil às regras do anfitrião, por exemplo, seria indesejável.
A elaboração de Bostrom é de tal maneira especulativa e futurista que parece desaguar no longo rio dos milenarismos. Talvez o futuro seja, sobretudo, o domínio da religião, tornando difícil cunhar palavras ou ideias totalmente livres das semânticas da fé. Antes de qualquer outra forma de narrar o mundo, as religiões se tornaram especialistas em imaginar realidades totalmente diferentes, sendo improvável que escapemos de seus esquemas interpretativos mais gerais sobre o que nos aguarda no futuro.
De toda forma, a reflexão de Bostrom, segundo me pareceu, está sustentada na crença de que a Super IA pode ser - ele deixa claro que ainda poderíamos seguir um caminho menos adequado - o pontifex que nos ligaria àquilo que as religiões "não realizaram" ao longo de suas histórias milenares. Ou talvez, ela seja um "update espiritual" que não poderia existir se deuses e outros mundos não fosse concebidos anteriormente.
A efetiva “ensiliciação” (de silício, em aproximação com o uso de carne em “encarnação”) das IAs em robôs parece ser o próximo passo, seguido por um horizonte mítico expresso sobretudo em algumas concepções transumanistas. Nesse contexto, o chip da Neuralink, cuja utilidade, relevância e viabilidade ainda não parecem claras, figura simultaneamente como objeto de entusiasmo (enthousiasmós, “estar cheio de um deus” em grego) e de anátema. O ideal de aperfeiçoamento e de superação de certos constrangimentos biológicos, bem como o sonho de ficção científica de transferir a alma individual de nosso “hardware” perecível, reproduz a dicotomia cartesiana que, a meu ver, atualiza o mito de Enoque, transladado em vida por Deus, conforme lemos no livro do Gênesis. Sobre os limites reflexivos dessa dicotomia, presente em algumas formulações transumanistas mais otimistas, como a de Ray Kurzweil, Noreen Herzfeld (2024, p. 150; 162) afirma:
Como a maioria das previsões para a IA, no entanto, a imortalidade cibernética dentro de nossas vidas é ao mesmo tempo extremamente otimista e equivocada. Ela se baseia na suposição de que nosso eu essencial consiste em nossas memórias e pensamentos, que não são nada além da informação armazenada no conectoma, ou nos padrões de neurônios em nosso cérebro. Essa suposição é, essencialmente, um dualismo neo-cartesiano, pois postula uma mente ou alma separável do corpo, não pré-existente, mas pós-existente. (...) devemos evitar o erro categorial de personificar a IA. Um computador não tem consciência, nem emoções, nem vontade própria e, apesar de todas as previsões, isso não está logo ali na esquina. A ideia, defendida por futuristas como Kurzweil ou Musk, de que apenas um pouco mais de complexidade fará surgir a consciência de repente é, na minha opinião, risível.

No campo das imaginações religiosamente orientadas, grupos pró-IA ou anti-IA - e o leitor pode antever as polarizações que se avizinha - tendem a personificar as inteligências como seres espirituais, ou seja, cometem o que Herzfeld considera um "erro categorial", mas em uma escala espiritual. Também não é improvável que alguns dos sujeitos pró-IA, em sua versão secular, não se percebam como religiosos, mas sim como sujeitos purificados de qualquer superstição analógica, associada a um passado defasado - quase-religião pode servir para definir essa posição.
Esses grupos adotam, conscientemente ou não, um metanarrativa mítico-tecnologista que reflete um sentimento de virtude cognitiva e até espiritual, semelhante ao sujeitos do cultic milieu, conceito cunhado pelo sociólogo Colin Campbell nos anos 1970 e revisitado em 2024 para descrever experimentações espirituais e o estranhamento que elas provocam na sociedade mais ampla. Talvez, em algum momento, esse estranhamento se inverta, passando a mirar tensões religiosas com as IAs ou minorias sectárias anti-IA, como subculturas alternativas. Se isso se confirmar, os grupos religiosos anti-IA serão, em sua maioria, cristãos, budistas, muçulmanos ou de candomblé? Serão chamados de fundamentalistas ou de excêntricos? Poderão contar com legislação que os proteja? Aprenderemos, em casa, na escola e até com as IAs, que devemos respeitar suas diferenças religiosas?
Os antagonistas religiosos das IAs, contudo, me chamam muito mais atenção. Eles já operam, e operarão ainda mais, por uma chave oposta à utilizada pelos entusiastas, sejam estes religiosos ou seculares. A cautela e os temores, reais ou imaginários, sobre o impacto das IAs, segundo pude observar em vídeos do YouTube brasileiro, são fortemente influenciados por literatura, mídias sociais e teorias da conspiração estadunidenses, como a da “Nova Ordem Mundial”. Para os anti-IA religiosos, essas inteligências não apenas ameaçam empregos ou criam possibilidades de armas mais letais e terríveis; elas são, na verdade, a manifestação do imago diaboli, tecnologias do anticristo e seus avançados sinais do fim iminente, previstos pelo livro do Apocalipse.
Muitas dessas interpretações engendram um tipo de “pânico das IAs”, principalmente quando exploram o medo para atrair atenção e engajamento, criando um verdadeiro remix entre fé, entretenimento, conspirações e o consumo que movimenta a economia da atenção nas redes sociais. Há aqui, creio, uma alquimia de pegada conservadora, que transmuta uma posição política crítica e imanente às IAs em uma narrativa escatológica. Imaginar o fim do mundo parece mais fácil.
Ainda na plataforma da Google, circulam elaborações anti-IA fascinantes, provavelmente presentes em todo o mundo, sugerindo que os demônios aprisionados por Salomão, segundo antigas narrativas apócrifas conhecidas em contextos ocultistas, judaicos e cristãos, teriam feito download nos chips de silício mais avançados do mundo. Conceitos religiosos êmicos como "incorporação" parecem em afinidade eletiva com "download", assim como "salvação", em algumas séries de stream famosas, é afim de "upload". Vale lembrar que ideias como incorporação, presentes em várias tradições, entre elas espíritas kardecistas e religiões de matriz africana, talvez possam criar interpretações interessantes sobre as IAs.
O antagonismo entre cristãos e as IAs tem a ver menos com tecnologias como as que existem atualmente, como o ChatGPT, Gemini e outras, do que com as expectativas, reais ou fantasiosas, de prolongamento da vida proposta pelo transhumanismo. Esse antagonismo tem relação com o choque entre duas elaborações salvíficas. Por não tolerar uma alternativa àquela proposta pela tradição cristã, certas representações otimistas, exageradas ou não, a respeito do futuro das IAs são reinterpretadas a partir da narrativa do apocalipse. A rejeição total ou parcial das IAs, contudo, precisam ser considaras como parte do fenômeno das relações tratadas aqui.
Algumas espiritualidades mais experimentais, com horizontes escatológicos que podem ou não incluir seres extraterrenos ao representarem as IAs, propõem leituras relativamente menos dramáticas, o que não significa a ausência de qualquer sentimento de risco existencial. Podemos acompanhar algumas ponderações desse tipo em podcasts brasileiros que convidam o sempre polido Jan Val Ellam, leitor do acima mencionado Ray Kurzweil, ou ainda em algumas publicações de Laércio Fonseca. Aparentemente, essas espiritualidades têm maiores inclinações à confecção de narrativas sustentadas no tropo da afinidade entre o desenvolvimento tecnológico e o desenvolvimento espiritual. As IAs seriam então parte da evolução espiritual humana. Pareceu-me ainda que essse grupo pode ser mais influenciado pela ficção científica.
Minha elaboração favorita sobre IAs e sua repercussão, entretanto, é a narrativa satânica, e conspiracionista, sobre Peter Thiel, o bilionário tecnologista e apoiador do MAGA, co-fundador e presidente da Palantir Technologies. Thiel é um transhumanista excêntrico que, por motivos que transitam entre cálculo político em favor da visibilidade e a perda do bom senso, tem feito uso de figuras religiosas, como o anticristo ou o apocalipse em alguns pronunciamentos. Suas posições atraíram a atenção de cristãos desconfiados. No Youtube, ele é frequentemente retratado como uma espécie de agente do diabo liderando o debate tecnológico e transhumanista, ou ainda, figura de proa de uma elite obscura que deseja instaurar um "tecnato" e colocar em uso supostas "tecnologias do anticristo" .
Francamente, eu não moveria um dedo no teclado para convencer alguém do contrário, dado que a principal empresa do bilionário, dedicada à produção armamentista de ponta, leva o nome do artefato mágico empunhando por Sauron, o senhor sombrio de Mordor, na trilogia O Senhor dos Anéis de Tolkien. Thiel também é dono Anduril Industries, que entre outras armas, fabrica drones que usam IAs. Aliás, o apelo geek de tecnologistas bilionários, como Thiel e Musk - aquele que disse, em 2014, que estamos evocando o demônio ao desenvolvermos as IAs - parece estimular a existência de um fandom nerd, com alguns traços de condição religiosa e que se comporta, pelo menos em alguns casos, como um tipo de fundamentalismo tecnológico avesso à ética ou ao espírito democrático.
De todo modo, os usos e rejeições de tipos diversos das IAs por indivíduos e grupos religiosos atesta sua presença sociotecnológica como atores capazes de influenciar o campo das crenças. Nosso entendimento sobre isso exige que aprendamos sobre os tipos de tecnologias usadas, suas particularidades técnicas, e os tipos de serviços que elas podem oferecer ao usuário-crente. Uma IA pensada como "homogênea", que funciona da mesma forma e que oferece a mesma coisa para todo mundo, é uma simplicação. Por isso, se podermos falar, como Peter Berger (2017), em "múltiplos altares da modernidade", precisamos aprender a pensar que a multiplicidade de caminhos possíveis, dentro e fora da religião, também é tecnologica. Em suma, estamos diante de "múltiplos altares digitais", presentes de maneiras distintas na vida religiosa não apenas pelas particularidade de um determinado sistema doutrinário, mas também também pela diversidade de IAs e serviços que podem ser oferecidos.

Os entrelaçamentos entre os imaginários religiosos e os imaginários tecnológicos sobre as IAs, como concebe a antropóloga Beth Singler (2025), já configuram um "novo normal" ao qual todo estudioso das religiões precisa estar atento. As respostas religiosas às expectativas criadas pelas IAs são elaboradas em consonância com as especificidades doutrinárias, comunitárias e históricas mais amplas de cada grupo. Não é possível, portanto, generalizar ou dicotomizar esses entrelaçamentos, embora talvez os polos da "rejeição" e da "adoção" consigam fazer mais barulho e desviar nossa atenção dos usos mais triviais e corriqueiros que adaptam a tecnologia — é o caso, por exemplo, de centenas de conteúdos no TikTok que fazem uso de animações geradas por IAs.
Independentemente da perspectiva religiosa, acredito que, no futuro, pesquisas quantitativas de instituições como o IBGE ou o Pew Research Center talvez incluam perguntas sobre IAs em contextos religiosos, fornecendo dados mais robustos sobre como as pessoas as percebem, seus usos ou evitações. Um exemplo de pergunta poderia ser: “Com que frequência você consulta uma IA por razões religiosas?”
A história nos lembra que toda forma de mediação tecnológica desafiou as religiões e alterou seus rumos. As respostas a elas foram ambivalentes, em vez de redutíveis ao dualismo absoluto entre "rejeição" e "adoção". Em outras situações, ocorreu o inverso: as tecnologias responderam, em alguma medida, a interpelações religiosas. Seus entrelaçamentos históricos testemunham a natureza dinâmica que religião e tecnologia compartilham.
Ps. 1: Prompt usado no ChatGPT para gerar a imagem de uma IA divinizada: “Create a realistic art that features an advanced technological divinity.”
Ps. 2: Os dedos apontando para cima parecem evocar uma ideia de divindade influenciada por representações cristãs, bem como pelo halo dourado comum na iconografia das grandes religiões. Haveria, nas bases de dados que formaram as IAs, uma teologia privilegiada ou uma ideia padrão do que conta como religião? A posição cultural ocidental dessas tecnologias determina certas definições de religião? Seja como for, a versão gratuita da IA quase me deu a imagem do Ultron.
Referências
BERGER, Peter L. Os múltiplos altares da modernidade: rumo a um paradigma da religião numa época pluralista. Tradução de Noéli Correia de Melo Sobrinho. Petrópolis: Vozes, 2017.
BOSTROM, Nick. AI Creation and the Cosmic Host. 2024. Disponível em: https://nickbostrom.com/papers/ai-creation-and-the-cosmic-host.pdf. Acesso em: 19 set. 2025.
CAMPBELL, Colin H. The Cult, the Cultic Milieu and Secularization. In: KAPLAN, Jeffrey; LÖÖW, Heléne (Ed.). The Cultic Milieu: Oppositional Subcultures in an Age of Globalization. Walnut Creek: AltaMira Press, 2002.
HERZFELD, Noreen. The Eschatological Future of Artificial Intelligence: Saviour or Apocalypse? In: SINGLER, Beth; WATTS, Fraser (orgs.). The Cambridge Companion to Religion and Artificial Intelligence. Cambridge: Cambridge University Press, 2024. p. 148–164.
KURZWEIL, Ray. The Age of Spiritual Machines: When Computers Exceed Human Intelligence. New York: Viking, 1999.
SINGLER, Beth. Religion and Artificial Intelligence: An Introduction. Oxford: Routledge, 2025

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